A
obra
Investigações
Filosóficas
de
Wittgenstein
e sua
descrição
do uso
da
linguagem
causaram um forte
impacto em
diversas
áreas da
filosofia.
Dentre as
principais
“provocações”
contidas no
texto, a
discussão em torno da
determinabilidade
do sentido
das
palavras
que
expressam
os
conceitos
possui
grande
repercussão
na
filosofia
da ciência,
posto que
questiona
diretamente
a
legitimidade
das
pretensões
científicas
de
explicação
da
realidade.
Tentarei
discutir
aqui em
que medida
a discussão
de
Wittgenstein
influenciou a
perspectiva histórico-cultural na filosofia da ciência
e
contribuiu
para o
fortalecimento
do
relativismo
científico.
A
ideia
fundamental do
ataque de
Wittgenstein
à
possibilidade
de
determinação
do sentido
das
palavras
começa a aparecer
na §65,
na qual
o filósofo
afirma que
“em vez
de indicar
algo que
é comum
a tudo
aquilo que
chamamos de
linguagem,
digo que
não há
uma coisa
comum a
esses
fenômenos,
em virtude
da qual
empregamos
a mesma
palavra,
mas sim
que estão
aparentados
uns com
os outros
de muitos
modos
diferentes”
(WITTGENSTEIN,
1979, p.
38, grifo
do autor).
O fato
de
utilizarmos
a palavra
linguagem
para nos
referir a
fenômenos
diversos
não
implica a
existência
de algo
essencial e
imprescindível,
comum a
todos esses
fenômenos,
capaz de
fundamentar
essa
utilização.
Não há
algo como uma
“essência
da
linguagem”.
Da mesma
forma que
não há
nada de
comum a
todos os
sentidos em
que
empregamos
a palavra
linguagem,
pode-se
observar
que
o
mesmo
ocorre
em
relação
às
outras
palavras.
O
que
existe
é
apenas
um
certo
grau
de
“parentesco”
entre
os sentidos,
semelhanças
e
diferenças
que
permitem-nos
aproximá-los
e
agrupá-los
em
torno
de
um
mesmo
termo.
Wittgenstein
solicita
que
ao
invés
de
tentarmos
refletir
sobre
esse
emprego
comum
e
produzir
elaboradas
teorias
que
o
justifiquem,
deveríamos
observar
como
costumamos
proceder
no
uso
corrente
da
linguagem.
Recorrer a abstrações ou análises descontextualizadas, como se as
palavras e seus significados pairassem no ar, seria um grande erro da
filosofia, pois “as confusões com as quais nos ocupamos nascem
quando a linguagem, por assim dizer, caminha no vazio, não quando
trabalha” (Idem, §132,
p.
58).
A
proposta
metodológica
wittgensteiniana
nos
convida
à
observação
e
à
descrição
de
nosso
comportamento
linguístico
(“não
pense,
mas
veja!”,
§66).
Propõe
que
a
investigação
acerca
dos
fenômenos
em
si
mesmos
seja
substituída
por
uma
investigação
sobre
os
modos
de
asserção
– tipos
de
enunciados
– que
empregamos
quando
nos
referimos
aos
fenômenos.
Procedendo
dessa
forma
poderíamos
perceber
nossas
confusões
e
equívocos
no
uso
da
linguagem,
o que nos
levaria
a
entender
que
os
problemas
filosóficos
são,
na
realidade,
pseudo-problemas.
A
ideia
de
parentesco
entre
os
sentidos
das
palavras
nos
leva
à
outra
ideia
central
na
discussão
de
Wittgenstein,
a
saber,
a
semelhança
de
família.
Uma
mesma
palavra
é
utilizada
para
referir-se
a
diversos “fenômenos”
que
guardam
semelhanças
entre
si,
tais
como
os
membros
de
uma
mesma
família.
Cada
palavra
deve
ter
uma
família
de
significações.
Entretanto, não
há
identidade
ou
igualdade
entre
familiares,
mas
apenas
semelhanças
que
não
precisam
estar
presentes
em
todos
os
seus
membros.
Há
semelhanças
que
aproximam
alguns,
mas
não
outros,
os
quais
podem
ser
relacionados
através
de
outras
características.
Wittgenstein
assume
uma
postura
anti-essencialista,
afirmando
que,
em
última
instância,
não
existem
propriedades
essenciais
ou
absolutamente
necessárias
a
uma
classe
de
coisas
para
que
possa
ser
designada
por
um
mesmo
signo.
No
entanto,
uma
maior
rigidez
conceitual
que
preze
pela
delimitação
explícita
e
inequívoca
do
significado
dos
termos,
tal
como
ocorre
com
os
conceitos
matemáticos,
seria
plenamente
possível
dentro
de
um
contexto
definido
e
específico,
isto
é,
dentro
de
um
jogo
de
linguagem.
Se
um
determinado
jogo
de
linguagem
nos
obriga
a
fixar
limites
para
o
sentido
de
algumas
palavras,
então
assim
podemos
proceder.
Contudo,
essa
rigidez
não
confere
nenhum
caráter
“essencial”
a
esses
termos,
nem
os
torna
mais
“exatos”
ou
mais
próximos
da
realidade
em
si
mesma.
É
apenas
uma
regra
específica
desse
jogo.
E
as
regras
do
jogo
de
linguagem
da
matemática ou das ciências
não
são
capazes
de
conferir-lhes
um
estatuto
epistemológico
privilegiado.
A
noção
de
“exatidão”
do
significado
de
um
conceito
é
considerada
relativa
pelo
filósofo.
Cada
jogo
de
linguagem
exige
um
nível
de
precisão na
determinação
do
conteúdo
de
suas
palavras
e
“um
ideal
de
exatidão
não
está
previsto;
não
sabemos
o
que
devemos
nos
representar
por
isso
– a
menos
que
você
estabeleça
o
que
deve
ser
assim
chamado.
Mas
ser-lhe-á
difícil
encontrar
tal
determinação”
(Idem,
§88,
p.
49).
Essa
inexatidão
não
nos
incomoda
em
nosso
uso
cotidiano
da
linguagem
e
nem
torna
inúteis
os
termos
que
empregamos.
Utilizamos amiúde
diversas
palavras,
como
a
palavra
jogo,
sem
que
tenhamos
limites
claros
e
determinados
para
seu
sentido.
Wittgenstein
também
defende que
a
subjetividade
não
interfere
na
determinação
do sentido
das
palavras.
Não é
necessário
nenhum ato
mental
doador de
significado
ou qualquer
interpretação
particular
dos
indivíduos
para que
as palavras
possam ser
compreendidas.
Não são
as
características
comuns e
essenciais
nem os
processos
psíquicos privados que
conferem
significado
à
linguagem,
mas o
seu
contexto de
uso ou
práxis
linguística.
A conexão
entre as
palavras e
os seus
conteúdos semânticos seria
estabelecida
através da
prática de
uso e
garantida
pelos
processos
de
educação,
aqui
entendidos
como
treinamento
ou
“adequação”
culturais.
Esse
treinamento
pressupõe
hábitos e
costumes
que
possibilitem
a conexão
entre uma
determinada
regra
linguístico-social
e o
comportamento
que, a
partir
dessa
regra, é
considerado
adequado.
Assim,
seria na
própria
prática
científica,
imersa em
um
determinado
contexto
histórico-cultural,
que a
determinação
do sentido
dos seus
termos seria
estabelecida.
Dessa forma,
a ciência
é vista
apenas como
um jogo
de
linguagem
que, a
semelhança
dos outros,
possui seus
hábitos e
suas
regras.
Para
a
perspectiva
histórico-social
da
filosofia
da ciência,
aqui
representada
pelos
filósofos
Thomas Kuhn
e Paul
Feyerabend,
a ciência,
como
qualquer
outro
empreendimento
humano, é
marcada
pela
história,
pela
temporalidade,
pelas
relações
sociais e
pela
falibilidade.
Faz-se
necessário,
portanto,
assim como
o propôs
Wittgenstein
em relação
à
linguagem,
uma análise
cuidadosa
da práxis
científica,
a fim
de
compreender
o seu
funcionamento
e suas
modificações
ao longo
do tempo.
Ao invés
de haver
um esforço
dos
filósofos
da ciência
em produzir
teorias
acerca de
como a
ciência se
organiza,
do que
ela trata
e de
quais são
seus
objetivos,
a
perspectiva
histórico-social
propõe que
apenas
“olhemos”
para as
práticas
científicas
em busca
dessas
respostas.
O
filósofo
Thomas Kuhn
defende o uso do termo paradigma,
caracterizado
por um
conjunto de
regras
implicitamente
assumidas
pela
comunidade
científica
que orienta
e define
sua
prática. A
noção de
paradigma
aproxima-se
da ideia
dos jogos
de
linguagem
definidos
por
Wittgenstein.
O
desenvolvimento
da ciência
dar-se-ia
através
das
revoluções
científicas,
nas quais
ocorreriam
as
competições,
crises e
mudanças
paradigmáticas.
Tudo se
passa como
se os
defensores
de
paradigmas
divergentes
fossem, em
uma
analogia do
próprio
Thomas
Kuhn,
membros de
comunidades
de cultura
e linguagem
diferentes,
os quais
poderiam
ambos estar
com a
razão. A
incompatibilidade
entre
paradigmas
produz o
problema da
incomensurabilidade,
bastante
discutido por Kuhn e elemento central do debate acerca do progresso
da ciência. Da
mesma forma
que há
incomensurabilidade
entre os
jogos de
linguagem,
a
comparação
entre os
paradigmas
também
apresenta
grandes
restrições.
Essas
ideias, de
forte
inspiração
wittgensteiniana,
podem ser
utilizadas
para
fundamentar
um
relativismo
científico.
Kuhn
também
discute o
papel da
linguagem
no
desenvolvimento
da ciência
e assume
que como
“não
pode haver
nenhum
sistema de
linguagem
ou de
conceitos
que seja
cientifica
ou
empiricamente
neutro,
então a
construção
de testes
e teorias
alternativas
deverá
derivar-se
de alguma
tradição
baseada em
um
paradigma”
(KUHN,
2007, p.
187). A
linguagem
utilizada
pela
ciência
para
expressar
seus
conceitos e
teorias é
“contaminada”
pelos
pressupostos
de um
paradigma,
funcionando
como uma
fonte de
entraves
para o
surgimento
de
proposições
que
contrariem
esse mesmo
paradigma
ou tentem
confrontá-lo
diretamente.
Essa
limitação
linguística
restringiria
inclusive o
campo de
experimentos
possíveis
para se
“verificar”
uma teoria
ou o
arcabouço
metodológico
que poderá
ser
utilizado
nesses
testes.
A
relação
entre a
educação
científica
e os
paradigmas
também é
muito
semelhante
à relação
descrita
por
Wittgenstein
entre o
“treinamento”
e os
jogos de
linguagem.
A educação
científica funciona
como “porta
de entrada”
do
paradigma
ou processo
de
aprendizagem
das regras
do jogo
paradigmático.
A relativa
homogeneidade
da
comunidade
científica
pode ser
compreendida
a partir
da eficácia
desse
processo. O
estudante
das
ciências
naturais
não entra
em contato
com os
diversos
problemas
levantados
e com
as
múltiplas
soluções,
muitas
vezes
conflitantes
e
incomensuráveis,
propostas
para esses
problemas
ao longo
da história
da ciência.
Sua
formação
não inclui
a leitura
dos textos
originais
dos
principais
pensadores
de sua
área.
Através
dos manuais
científicos
e da
observação
das
práticas
dos
cientistas
mais
experientes,
o futuro
cientista
precisa
aprender a
trabalhar
apenas com
os
problemas
reconhecidos
pelo
paradigma
vigente e
a
compreender
as soluções
apresentadas
por esse
paradigma
para os
problemas
considerados
relevantes.
Dessa
forma,
todos os
cientistas
são desde
cedo
“iniciados”
no
paradigma
dominante, tal como somos iniciados nos
jogos de linguagem estabelecidos na nossa cultura,
e passam
a ver
o mundo
através
dele,
facilitando
a coesão
interna da
comunidade
científica.
O
filósofo
Paul
Feyerabend
vai além
de Thomas
Kuhn e
defende um
relativismo
radical na
análise do
desenvolvimento
científico.
Feyerabend argumenta que a tese da perspectiva filosófica
histórico-social de que devemos analisar a história da ciência,
suas regras práticas e sua estrutura, na tentativa de compreender a
evolução científica, deve ser aprofundada. Se queremos entender a
ciência a partir de seus fatos históricos, então precisamos
considerar que esses fatos não existem de forma independente, mas
dentro de uma rede compartilhada de significados. Para
ele a
ciência é
um
empreendimento
humano
essencialmente
plural, no
qual a
multiplicidade
de teorias
é muito
mais
benéfica e
capaz de
estimular o
progresso
do que
uniformizações
baseadas em
uma
pseudo-racionalidade
científica.
Sendo a
ciência
apenas mais
um jogo
de
linguagem,
não há
razões
definir a
priori
quais as
regras que
devem ser
estabelecidas
para a
produção
de
interpretações
“corretas”
da
realidade,
tal como
o propõe
o método
científico.
A posição reativista de Feyerabend ficou
conhecida
na
filosofia
da ciência
como
Anarquismo
Epistemológico.
A
ciência
“objetiva”,
defende Feyerabend, que
impulsionou
a busca
por regras
rígidas e
imutáveis
que
levassem a
uma
aproximação
gradual da
“verdade”
da
natureza,
não é
a ciência
real, mas
um
simulacro
produzido
pelo
treinamento
científico.
Para Feyerabend, essa
visão
rígida da
ciência é
contrária
a uma
atitude
humanista,
sufocando a
liberdade e
a plenitude
do ser
humano e
de sua
cultura. É
preciso
considerar
a ciência
enquanto
construção
de um
determinado
período do
desenvolvimento
da
humanidade,
definida
pelos
limites de
seu tempo
histórico
e com
fortes
traços da
cultura
dominante. Assim,
o fazer
científico
“desafia
uma análise
baseada em
regras que
tenham sido
estabelecidas
de antemão
e sem
levar em
consideração
as
condições
sempre
cambiantes
da
história”
(FEYERABEND,
2007, p.
33).
Wittgenstein
parece ter influenciado bastante o posicionamento de Feyerabend, que
defendia que todas as teorias, mesmo as mais óbvias e evidentes,
possuiriam limitações imperceptíveis à luz dessas mesmas teorias.
Para resolver essa questão, Feyerabend propõe uma solução
semelhante ao método utilizado por Wittgenstein para solucionar
questões relativas à sua descrição da linguagem. Feyerabend
acredita que a tomada de consciência das limitações de uma teoria
e suas consequências seria possível apenas a partir do contato com
um ponto de vista completamente diferente, capaz de nos acordar desse
“sono dogmático”. Apenas pela oposição poderíamos enxergar o
que estamos admitindo ou supondo em nossa abordagem, pois
“preconceitos são descobertos por contraste e não por análise”
(FEYERABEND, 2007, p. 48). Assim, seria preciso conviver
constantemente com visões de mundo divergentes para diminuir a
cegueira imposta por nossos próprios modelos de investigação. A
metodologia de Wittgenstein também aposta na diversidade. Para ele,
seria a partir da descrição e análise de diferentes jogos de
linguagem que poderíamos nos livrar de nossos preconceitos
linguísticos e consequentemente dos nossos problemas filosóficos.
Para
Feyerabend
e
Wittgenstein,
seria
possível
construir
uma ciência
com base
em
conceitos
de
significação
unívoca e
livre de
ambiguidades
ou
complicações
polissêmicas.
No
entanto,
isso não
tornaria
essa
ciência
mais
próxima da
verdade ou
não
ampliaria
necessariamente
nosso
conhecimento
acerca da
realidade
da
natureza.
Poderíamos
construir
uma
linguagem
ideal,
como
pretende a
matemática
ou a
lógica,
para
atender aos
anseios de
certeza da
ciência.
Todavia,
essa
exatidão
linguística
não nos
possibilitaria
conferir-lhe
um estatuto
superior,
posto que
“aqui a
palavra
'ideal'
induziria a
erro, pois
soa como
se estas
linguagens
fossem
melhores,
mais
completas
que nossa
linguagem
cotidiana;
e como
se fosse
necessário
um lógico
para
mostrar
finalmente
aos homens
que
aparência
deve ter
uma frase
correta”
(WITTGENSTEIN,
1979, §81,
p. 45).
Nessa
perspectiva,
não há
nenhuma
razão para
que o
conhecimento
científico
seja
considerado
superior às
outras
formas
humanas de
relacionar-se
com o
mundo. É
preciso
compreender
que “a
ciência
não é
nem uma
tradição
isolada nem
a melhor
tradição
que há,
exceto para
aqueles que
se
acostumaram
com sua
presença,
seus
benefícios
e suas
desvantagens.
Em uma
democracia,
deveria ser
separada do
Estado
exatamente
como as
igrejas ora
estão dele
separadas”
(FEYERABEND,
2007, p.
319). Como
seres do
conflito e
das
contradições
temos
direito a
uma cultura
em que
visões
diferentes
possam
conviver
sem serem
silenciadas.
Seria
necessário,
portanto,
permitir
que a
ciência
goze de
liberdade
semelhante
à
liberdade
de criação
artística,
sem amarras
a
priori,
que nos
permita
descobrir e
transformar
o mundo
em que
vivemos.
Observa-se
assim que o pensamento de Wittgenstein exerceu forte influência na
abordagem histórico-cultural da filosofia da ciência. Tanto Kuhn
quanto Feyerabend fazem referências diretas ao livro Investigações
Filosóficas em suas principais
obras. O impacto das questões suscitadas por Wittgenstein em sua
descrição da linguagem foi enorme, atingindo quase todas as áreas
da filosofia e atingindo quase todo o conhecimento já produzido pelo
ser humano, inclusive a ciência.
REFERÊNCIAS
FEYERABEND,
Paul K.
Contra
o
método.
Tradução
de Cezar
Augusto
Mortari.
São Paulo:
Editora
UNESP,
2007.
KUHN,
Thomas S.
A
estrutura
das
revoluções
científicas.
Tradução
de Beatriz
Vianna
Boeira e
Nelson
Boeira. 9.
ed. São
Paulo:
Perspectiva,
2007.
WITTGENSTEIN,
Ludwig.
Investigações
Filosóficas.
Tradução
de José
Carlos
Bruni. 2.
ed. Coleção
Os
Pensadores.
São Paulo:
Abril
Cultural,
1979.