domingo, 3 de novembro de 2013

Wittgenstein e a Filosofia da ciência


A obra Investigações Filosóficas de Wittgenstein e sua descrição do uso da linguagem causaram um forte impacto em diversas áreas da filosofia. Dentre as principaisprovocaçõescontidas no texto, a discussão em torno da determinabilidade do sentido das palavras que expressam os conceitos possui grande repercussão na filosofia da ciência, posto que questiona diretamente a legitimidade das pretensões científicas de explicação da realidade. Tentarei discutir aqui em que medida a discussão de Wittgenstein influenciou a perspectiva histórico-cultural na filosofia da ciência e contribuiu para o fortalecimento do relativismo científico.
A ideia fundamental do ataque de Wittgenstein à possibilidade de determinação do sentido das palavras começa a aparecer na §65, na qual o filósofo afirma queem vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que não uma coisa comum a esses fenômenos, em virtude da qual empregamos a mesma palavra, mas sim que estão aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes(WITTGENSTEIN, 1979, p. 38, grifo do autor). O fato de utilizarmos a palavra linguagem para nos referir a fenômenos diversos não implica a existência de algo essencial e imprescindível, comum a todos esses fenômenos, capaz de fundamentar essa utilização. Não algo como umaessência da linguagem. Da mesma forma que não nada de comum a todos os sentidos em que empregamos a palavra linguagem, pode-se observar que o mesmo ocorre em relação às outras palavras. O que existe é apenas um certo grau deparentescoentre os sentidos, semelhanças e diferenças que permitem-nos aproximá-los e agrupá-los em torno de um mesmo termo.
Wittgenstein solicita que ao invés de tentarmos refletir sobre esse emprego comum e produzir elaboradas teorias que o justifiquem, deveríamos observar como costumamos proceder no uso corrente da linguagem. Recorrer a abstrações ou análises descontextualizadas, como se as palavras e seus significados pairassem no ar, seria um grande erro da filosofia, pois “as confusões com as quais nos ocupamos nascem quando a linguagem, por assim dizer, caminha no vazio, não quando trabalha” (Idem, §132, p. 58). A proposta metodológica wittgensteiniana nos convida à observação e à descrição de nosso comportamento linguístico (não pense, mas veja!, §66). Propõe que a investigação acerca dos fenômenos em si mesmos seja substituída por uma investigação sobre os modos de asserçãotipos de enunciadosque empregamos quando nos referimos aos fenômenos. Procedendo dessa forma poderíamos perceber nossas confusões e equívocos no uso da linguagem, o que nos levaria a entender que os problemas filosóficos são, na realidade, pseudo-problemas.
A ideia de parentesco entre os sentidos das palavras nos leva à outra ideia central na discussão de Wittgenstein, a saber, a semelhança de família. Uma mesma palavra é utilizada para referir-se a diversos “fenômenosque guardam semelhanças entre si, tais como os membros de uma mesma família. Cada palavra deve ter uma família de significações. Entretanto, não identidade ou igualdade entre familiares, mas apenas semelhanças que não precisam estar presentes em todos os seus membros. semelhanças que aproximam alguns, mas não outros, os quais podem ser relacionados através de outras características. Wittgenstein assume uma postura anti-essencialista, afirmando que, em última instância, não existem propriedades essenciais ou absolutamente necessárias a uma classe de coisas para que possa ser designada por um mesmo signo.
No entanto, uma maior rigidez conceitual que preze pela delimitação explícita e inequívoca do significado dos termos, tal como ocorre com os conceitos matemáticos, seria plenamente possível dentro de um contexto definido e específico, isto é, dentro de um jogo de linguagem. Se um determinado jogo de linguagem nos obriga a fixar limites para o sentido de algumas palavras, então assim podemos proceder. Contudo, essa rigidez não confere nenhum caráteressenciala esses termos, nem os torna maisexatosou mais próximos da realidade em si mesma. É apenas uma regra específica desse jogo. E as regras do jogo de linguagem da matemática ou das ciências não são capazes de conferir-lhes um estatuto epistemológico privilegiado.
A noção deexatidãodo significado de um conceito é considerada relativa pelo filósofo. Cada jogo de linguagem exige um nível de precisão na determinação do conteúdo de suas palavras eum ideal de exatidão não está previsto; não sabemos o que devemos nos representar por issoa menos que você estabeleça o que deve ser assim chamado. Mas ser-lhe-á difícil encontrar tal determinação(Idem, §88, p. 49). Essa inexatidão não nos incomoda em nosso uso cotidiano da linguagem e nem torna inúteis os termos que empregamos. Utilizamos amiúde diversas palavras, como a palavra jogo, sem que tenhamos limites claros e determinados para seu sentido.
Wittgenstein também defende que a subjetividade não interfere na determinação do sentido das palavras. Não é necessário nenhum ato mental doador de significado ou qualquer interpretação particular dos indivíduos para que as palavras possam ser compreendidas. Não são as características comuns e essenciais nem os processos psíquicos privados que conferem significado à linguagem, mas o seu contexto de uso ou práxis linguística. A conexão entre as palavras e os seus conteúdos semânticos seria estabelecida através da prática de uso e garantida pelos processos de educação, aqui entendidos como treinamento ouadequaçãoculturais. Esse treinamento pressupõe hábitos e costumes que possibilitem a conexão entre uma determinada regra linguístico-social e o comportamento que, a partir dessa regra, é considerado adequado.
Assim, seria na própria prática científica, imersa em um determinado contexto histórico-cultural, que a determinação do sentido dos seus termos seria estabelecida. Dessa forma, a ciência é vista apenas como um jogo de linguagem que, a semelhança dos outros, possui seus hábitos e suas regras.
Para a perspectiva histórico-social da filosofia da ciência, aqui representada pelos filósofos Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, a ciência, como qualquer outro empreendimento humano, é marcada pela história, pela temporalidade, pelas relações sociais e pela falibilidade. Faz-se necessário, portanto, assim como o propôs Wittgenstein em relação à linguagem, uma análise cuidadosa da práxis científica, a fim de compreender o seu funcionamento e suas modificações ao longo do tempo. Ao invés de haver um esforço dos filósofos da ciência em produzir teorias acerca de como a ciência se organiza, do que ela trata e de quais são seus objetivos, a perspectiva histórico-social propõe que apenasolhemospara as práticas científicas em busca dessas respostas.
O filósofo Thomas Kuhn defende o uso do termo paradigma, caracterizado por um conjunto de regras implicitamente assumidas pela comunidade científica que orienta e define sua prática. A noção de paradigma aproxima-se da ideia dos jogos de linguagem definidos por Wittgenstein. O desenvolvimento da ciência dar-se-ia através das revoluções científicas, nas quais ocorreriam as competições, crises e mudanças paradigmáticas. Tudo se passa como se os defensores de paradigmas divergentes fossem, em uma analogia do próprio Thomas Kuhn, membros de comunidades de cultura e linguagem diferentes, os quais poderiam ambos estar com a razão. A incompatibilidade entre paradigmas produz o problema da incomensurabilidade, bastante discutido por Kuhn e elemento central do debate acerca do progresso da ciência. Da mesma forma que incomensurabilidade entre os jogos de linguagem, a comparação entre os paradigmas também apresenta grandes restrições. Essas ideias, de forte inspiração wittgensteiniana, podem ser utilizadas para fundamentar um relativismo científico.
Kuhn também discute o papel da linguagem no desenvolvimento da ciência e assume que comonão pode haver nenhum sistema de linguagem ou de conceitos que seja cientifica ou empiricamente neutro, então a construção de testes e teorias alternativas deverá derivar-se de alguma tradição baseada em um paradigma(KUHN, 2007, p. 187). A linguagem utilizada pela ciência para expressar seus conceitos e teorias écontaminadapelos pressupostos de um paradigma, funcionando como uma fonte de entraves para o surgimento de proposições que contrariem esse mesmo paradigma ou tentem confrontá-lo diretamente. Essa limitação linguística restringiria inclusive o campo de experimentos possíveis para severificaruma teoria ou o arcabouço metodológico que poderá ser utilizado nesses testes.
A relação entre a educação científica e os paradigmas também é muito semelhante à relação descrita por Wittgenstein entre otreinamentoe os jogos de linguagem. A educação científica funciona comoporta de entradado paradigma ou processo de aprendizagem das regras do jogo paradigmático. A relativa homogeneidade da comunidade científica pode ser compreendida a partir da eficácia desse processo. O estudante das ciências naturais não entra em contato com os diversos problemas levantados e com as múltiplas soluções, muitas vezes conflitantes e incomensuráveis, propostas para esses problemas ao longo da história da ciência. Sua formação não inclui a leitura dos textos originais dos principais pensadores de sua área. Através dos manuais científicos e da observação das práticas dos cientistas mais experientes, o futuro cientista precisa aprender a trabalhar apenas com os problemas reconhecidos pelo paradigma vigente e a compreender as soluções apresentadas por esse paradigma para os problemas considerados relevantes. Dessa forma, todos os cientistas são desde cedoiniciadosno paradigma dominante, tal como somos iniciados nos jogos de linguagem estabelecidos na nossa cultura, e passam a ver o mundo através dele, facilitando a coesão interna da comunidade científica.
O filósofo Paul Feyerabend vai além de Thomas Kuhn e defende um relativismo radical na análise do desenvolvimento científico. Feyerabend argumenta que a tese da perspectiva filosófica histórico-social de que devemos analisar a história da ciência, suas regras práticas e sua estrutura, na tentativa de compreender a evolução científica, deve ser aprofundada. Se queremos entender a ciência a partir de seus fatos históricos, então precisamos considerar que esses fatos não existem de forma independente, mas dentro de uma rede compartilhada de significados. Para ele a ciência é um empreendimento humano essencialmente plural, no qual a multiplicidade de teorias é muito mais benéfica e capaz de estimular o progresso do que uniformizações baseadas em uma pseudo-racionalidade científica. Sendo a ciência apenas mais um jogo de linguagem, não razões definir a priori quais as regras que devem ser estabelecidas para a produção de interpretaçõescorretasda realidade, tal como o propõe o método científico. A posição reativista de Feyerabend ficou conhecida na filosofia da ciência como Anarquismo Epistemológico.
A ciênciaobjetiva, defende Feyerabend, que impulsionou a busca por regras rígidas e imutáveis que levassem a uma aproximação gradual daverdadeda natureza, não é a ciência real, mas um simulacro produzido pelo treinamento científico. Para Feyerabend, essa visão rígida da ciência é contrária a uma atitude humanista, sufocando a liberdade e a plenitude do ser humano e de sua cultura. É preciso considerar a ciência enquanto construção de um determinado período do desenvolvimento da humanidade, definida pelos limites de seu tempo histórico e com fortes traços da cultura dominante. Assim, o fazer científicodesafia uma análise baseada em regras que tenham sido estabelecidas de antemão e sem levar em consideração as condições sempre cambiantes da história(FEYERABEND, 2007, p. 33).
Wittgenstein parece ter influenciado bastante o posicionamento de Feyerabend, que defendia que todas as teorias, mesmo as mais óbvias e evidentes, possuiriam limitações imperceptíveis à luz dessas mesmas teorias. Para resolver essa questão, Feyerabend propõe uma solução semelhante ao método utilizado por Wittgenstein para solucionar questões relativas à sua descrição da linguagem. Feyerabend acredita que a tomada de consciência das limitações de uma teoria e suas consequências seria possível apenas a partir do contato com um ponto de vista completamente diferente, capaz de nos acordar desse “sono dogmático”. Apenas pela oposição poderíamos enxergar o que estamos admitindo ou supondo em nossa abordagem, pois “preconceitos são descobertos por contraste e não por análise” (FEYERABEND, 2007, p. 48). Assim, seria preciso conviver constantemente com visões de mundo divergentes para diminuir a cegueira imposta por nossos próprios modelos de investigação. A metodologia de Wittgenstein também aposta na diversidade. Para ele, seria a partir da descrição e análise de diferentes jogos de linguagem que poderíamos nos livrar de nossos preconceitos linguísticos e consequentemente dos nossos problemas filosóficos.
Para Feyerabend e Wittgenstein, seria possível construir uma ciência com base em conceitos de significação unívoca e livre de ambiguidades ou complicações polissêmicas. No entanto, isso não tornaria essa ciência mais próxima da verdade ou não ampliaria necessariamente nosso conhecimento acerca da realidade da natureza. Poderíamos construir uma linguagem ideal, como pretende a matemática ou a lógica, para atender aos anseios de certeza da ciência. Todavia, essa exatidão linguística não nos possibilitaria conferir-lhe um estatuto superior, posto queaqui a palavra 'ideal' induziria a erro, pois soa como se estas linguagens fossem melhores, mais completas que nossa linguagem cotidiana; e como se fosse necessário um lógico para mostrar finalmente aos homens que aparência deve ter uma frase correta(WITTGENSTEIN, 1979, §81, p. 45).
Nessa perspectiva, não nenhuma razão para que o conhecimento científico seja considerado superior às outras formas humanas de relacionar-se com o mundo. É preciso compreender quea ciência não é nem uma tradição isolada nem a melhor tradição que há, exceto para aqueles que se acostumaram com sua presença, seus benefícios e suas desvantagens. Em uma democracia, deveria ser separada do Estado exatamente como as igrejas ora estão dele separadas(FEYERABEND, 2007, p. 319). Como seres do conflito e das contradições temos direito a uma cultura em que visões diferentes possam conviver sem serem silenciadas. Seria necessário, portanto, permitir que a ciência goze de liberdade semelhante à liberdade de criação artística, sem amarras a priori, que nos permita descobrir e transformar o mundo em que vivemos.
Observa-se assim que o pensamento de Wittgenstein exerceu forte influência na abordagem histórico-cultural da filosofia da ciência. Tanto Kuhn quanto Feyerabend fazem referências diretas ao livro Investigações Filosóficas em suas principais obras. O impacto das questões suscitadas por Wittgenstein em sua descrição da linguagem foi enorme, atingindo quase todas as áreas da filosofia e atingindo quase todo o conhecimento já produzido pelo ser humano, inclusive a ciência.


REFERÊNCIAS


FEYERABEND, Paul K. Contra o método. Tradução de Cezar Augusto Mortari. São Paulo: Editora UNESP, 2007.


KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.


WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. 2. ed. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.