O Mangue Beat influenciou muitas bandas de Pernambuco
e do Brasil,
sendo o principal movimento musical nacional dos últimos 20 anos.
Sendo o mangue
o ecossistema biologicamente mais rico do planeta, o Mangue Beat
precisava formar uma cena musical tão rica e diversificada como os
manguezais. Devido a essa ênfase na diversidade, a agitação na
música contaminou outras formas de expressão culturais como o
cinema, a moda e as artes plásticas. O álbum “Da lama ao caos”
de Chico Science e Nação Zumbi, lançado em 1994, pode ser
considerado um manifesto desse movimento. Em sua primeira faixa,
intitulada “Monólogo ao pé do ouvido”, Chico Science
apresenta a proposta estético-política do Mangue Beat. Uma reflexão
pormenorizada acerca dessa faixa pode nos levar a uma maior
compreensão das bandeiras político-filosóficas levantadas pelo
movimento.
A faixa inicia-se com uma provocação estética em relação ao
tradicionalismo na música:
“Modernizar o
passado
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”.
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”.
As composições musicais muitas vezes são criticadas por sua falta
de rigor em relação à harmonia de suas notas e acordes. Chico questiona essa visão tradicional e engessada, falando em uma
modernização do passado e uma “evolução musical”. Ao dizer
que não precisa das notas musicais, sugere que é possível
construir um novo conceito de música, de sonoridade, de estilo
estético fortemente caracterizado pelos instrumentos de percussão
(cabe lembrar que a maior parte dos
instrumentos de percussão não possuem altura determinada,
ou seja, não podem ser precisamente afinados). A própria
variabilidade sonora da percussão leva a uma música inovadora, uma
tentativa de desorganizar a metódica e rígida forma de se fazer e
pensar a música. Podem-se ressaltar também as influências nada
óbvias do movimento mangue: Maracatu rural e Rock. O movimento se
propõe então a misturar, a ousar, a provocar o encontro do
tradicional com o moderno. Esse sincretismo sonoro explicita a
pluralidade de nosso tempo, marcado pelo cosmopolitismo e pela
diversidade. A música, enquanto expressão artística, deve perceber
as marcas de seu tempo, ser sensível às angústias e anseios do
homem contemporâneo e expressá-los.
Posteriormente, a faixa inicial do álbum-manifesto do Mangue Beat
enuncia algo de grande profundidade:
“O medo dá origem ao mal”.
Chico propõe uma relação de geração entre conceitos. Ocorre uma
subjetivação do mal, que se identifica com o medo psicológico.
Ora, tal relação pressupõe que o mal, seja ele o que ou quem for,
pode ser superado por cada um de nós. É um discurso que
potencializa a capacidade transformadora do indivíduo e o faz
acreditar que pode vencer essa disputa contra “o mal”, a qual se
transforma numa luta consigo mesmo. Trata-se de uma expressão
politicamente subversiva e transformadora.
A música
segue com um conteúdo político bastante significativo:
“O homem coletivo
sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade.”
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade.”
A utilização da expressão “homem coletivo” ressalta a
importância da percepção de que estamos “condenados” à
convivência coletiva, e que, portanto, devemos pensar nossa
existência a partir dessa realidade. Qualquer transformação real
em nossas vidas deve considerar o caráter organizacional coletivo. A
expressão aponta para uma superação do individualismo, traço tão
forte em nossa cultura atual.
São apresentados então outros valores dominantes em nossa
sociedade, os quais vêm sempre acompanhados da noção de
individualismo e egoísmo: orgulho, arrogância, glória. A relação
de domínio é caracterizada junto à noção de imaginação, o que
pressupõe mais uma vez uma subjetivação das questões sociais e
políticas. No mundo da propaganda e do consumo, o elemento
imaginativo e numinoso ganha força determinante. Os instrumentos de
dominação e opressão passam a ter características psicológicas e
morais, identificados com o desejo e com a noção de “necessidade
criada”. Sendo assim, os pressupostos revolucionários devem se
preocupar com a libertação do homem em relação à escravidão
forjada por uma imaginação a serviço do consumo. Essa
característica é apreendida pelo movimento Mangue Beat,
vanguardista em relação a essa leitura. O trecho da música termina
com uma expressão que deixa claro o sentimento de raiva por aqueles
que destroem o poder e a capacidade de defesa frente à domesticação
da humanidade.
O movimento Mangue Beat é um forte exemplo da força política e
filosófica da cultura pernambucana. É essa força que deve ser
aproveitada e valorizada, a fim de que busquemos em nossas raízes o
fundamento para a construção da sociedade e da existência que
queremos.