quinta-feira, 18 de abril de 2013

Filosofia da cultura pernambucana

Segunda parte do trabalho que escrevi em 2010 para a disciplina Filosofia da Cultura.

O Mangue Beat influenciou muitas bandas de Pernambuco e do Brasil, sendo o principal movimento musical nacional dos últimos 20 anos. Sendo o mangue o ecossistema biologicamente mais rico do planeta, o Mangue Beat precisava formar uma cena musical tão rica e diversificada como os manguezais. Devido a essa ênfase na diversidade, a agitação na música contaminou outras formas de expressão culturais como o cinema, a moda e as artes plásticas. O álbum “Da lama ao caos” de Chico Science e Nação Zumbi, lançado em 1994, pode ser considerado um manifesto desse movimento. Em sua primeira faixa, intitulada “Monólogo ao pé do ouvido”, Chico Science apresenta a proposta estético-política do Mangue Beat. Uma reflexão pormenorizada acerca dessa faixa pode nos levar a uma maior compreensão das bandeiras político-filosóficas levantadas pelo movimento.
A faixa inicia-se com uma provocação estética em relação ao tradicionalismo na música:
Modernizar o passado
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”.

As composições musicais muitas vezes são criticadas por sua falta de rigor em relação à harmonia de suas notas e acordes. Chico questiona essa visão tradicional e engessada, falando em uma modernização do passado e uma “evolução musical”. Ao dizer que não precisa das notas musicais, sugere que é possível construir um novo conceito de música, de sonoridade, de estilo estético fortemente caracterizado pelos instrumentos de percussão (cabe lembrar que a maior parte dos instrumentos de percussão não possuem altura determinada, ou seja, não podem ser precisamente afinados). A própria variabilidade sonora da percussão leva a uma música inovadora, uma tentativa de desorganizar a metódica e rígida forma de se fazer e pensar a música. Podem-se ressaltar também as influências nada óbvias do movimento mangue: Maracatu rural e Rock. O movimento se propõe então a misturar, a ousar, a provocar o encontro do tradicional com o moderno. Esse sincretismo sonoro explicita a pluralidade de nosso tempo, marcado pelo cosmopolitismo e pela diversidade. A música, enquanto expressão artística, deve perceber as marcas de seu tempo, ser sensível às angústias e anseios do homem contemporâneo e expressá-los.
Posteriormente, a faixa inicial do álbum-manifesto do Mangue Beat enuncia algo de grande profundidade:
O medo dá origem ao mal”.
Chico propõe uma relação de geração entre conceitos. Ocorre uma subjetivação do mal, que se identifica com o medo psicológico. Ora, tal relação pressupõe que o mal, seja ele o que ou quem for, pode ser superado por cada um de nós. É um discurso que potencializa a capacidade transformadora do indivíduo e o faz acreditar que pode vencer essa disputa contra “o mal”, a qual se transforma numa luta consigo mesmo. Trata-se de uma expressão politicamente subversiva e transformadora.
A música segue com um conteúdo político bastante significativo:

O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder
Bravio da humanidade.”

A utilização da expressão “homem coletivo” ressalta a importância da percepção de que estamos “condenados” à convivência coletiva, e que, portanto, devemos pensar nossa existência a partir dessa realidade. Qualquer transformação real em nossas vidas deve considerar o caráter organizacional coletivo. A expressão aponta para uma superação do individualismo, traço tão forte em nossa cultura atual.
São apresentados então outros valores dominantes em nossa sociedade, os quais vêm sempre acompanhados da noção de individualismo e egoísmo: orgulho, arrogância, glória. A relação de domínio é caracterizada junto à noção de imaginação, o que pressupõe mais uma vez uma subjetivação das questões sociais e políticas. No mundo da propaganda e do consumo, o elemento imaginativo e numinoso ganha força determinante. Os instrumentos de dominação e opressão passam a ter características psicológicas e morais, identificados com o desejo e com a noção de “necessidade criada”. Sendo assim, os pressupostos revolucionários devem se preocupar com a libertação do homem em relação à escravidão forjada por uma imaginação a serviço do consumo. Essa característica é apreendida pelo movimento Mangue Beat, vanguardista em relação a essa leitura. O trecho da música termina com uma expressão que deixa claro o sentimento de raiva por aqueles que destroem o poder e a capacidade de defesa frente à domesticação da humanidade.
O movimento Mangue Beat é um forte exemplo da força política e filosófica da cultura pernambucana. É essa força que deve ser aproveitada e valorizada, a fim de que busquemos em nossas raízes o fundamento para a construção da sociedade e da existência que queremos.

Contribuição da Filosofia da cultura para a resposta (ou para a pergunta) "Quem somos nós?"

Texto que escrevi para um trabalho de avaliação da disciplina "Filosofia da Cultura" em 2010.

O conceito de ser humano, diferenciado do conceito de animal racional, científico ou biológico, pressupõe a vida humana em sociedade. Tal pressuposto decorre do fato de que precisamos do outro para que nossa existência seja de fato garantida. Precisamos do outro psicologicamente para conhecer, na diferença, nossa própria identidade. É necessário legitimar e reconhecer que o outro existe e difere de nós, e a partir do outro firmarmos a nossa ipseidade, nos reconhecendo em nossa singularidade.
Se assumirmos que a nossa existência é marcadamente filosófica, o procedimento dialético, no sentido socrático do termo, nos evidencia mais uma vez a necessidade do outro. Não há filosofia sem diálogo, sem que nos confrontemos com as teses de outrem, a fim de que nossas próprias teses sejam legitimadas. E as perguntas que colocamos desde que somos crianças (perguntas como “o que é isso ou aquilo”), não nos afastam da afirmativa de que nossa existência não pode prescindir desse movimento filosófico. Até mesmo biologicamente, se tomarmos o princípio evolucionista darwiniano, a formação de comunidades mostra-se essencial para a construção do ser humano tal como o reconhecemos hoje.
Por outro lado, não podemos dizer que somos animais “privilegiados" fisicamente ou fisiologicamente, como ocorre com outras espécies. Não conseguimos desenvolver grande velocidade, não possuímos garras ou presas, não temos sentidos muito aguçados nem sequer capacidades miméticas de defesa. Não nos resta, pois, outra alternativa de sobrevivência senão usar a nossa inteligência para modificar a natureza e torná-la habitável. A razão é nosso grande e único mecanismo de defesa.
Devido a essas duas necessidades humanas, de convivência coletiva e de transformação racional da natureza, produzimos uma cultura. Nesse sentido podemos falar em um “homo culturalis”, em uma existência humana intrinsecamente cultural. Sendo assim, a reflexão filosófica sobre a cultura torna-se fundamental para uma compreensão mais ampla de quem somos nós, de nossa própria existência. Na percepção individual ou coletiva da identidade, a cultura exerce um papel primordial para determinar os padrões de conduta e as características próprias de cada grupo humano.